Juliana Bootz

 

A pequena propriedade rural possui proteção constitucional como direito fundamental positivada no art. 5º, inciso XXVI, que assim estabelece: “A pequena propriedade rural, assim definida em lei, desde que trabalhada pela família, não será objeto de penhora para pagamento de débitos decorrentes de sua atividade produtiva, dispondo a lei sobre os meios de financiar o seu desenvolvimento”.

Da leitura do dispositivo, percebe-se que a Carta Magna não define o conceito de pequena propriedade deixando ao alvedrio do legislador sua definição por meio de lei própria.

O Código de Processo Civil, reproduzindo a exata redação do CPC/73, traz a impenhorabilidade absoluta da pequena propriedade rural, desde que trabalhada pela família, mas também deixa de definir o conceito de pequena propriedade.

A ausência de definição legal fez com que surgissem ao longo do tempo diversas interpretações doutrinárias e jurisprudenciais sobre o tema. Inexistindo norma específica que defina a pequena propriedade rural para fins de impenhorabilidade, os Tribunais passaram a aplicar a lei mais protetora ao produtor rural, qual seja, Lei nº 8.629/1993, que regulamenta a reforma agrária.

O art. 4º, II, “a” da referida Lei, dispõe que é considerada pequena propriedade o imóvel rural com área de até quatro módulos fiscais. Este é o parâmetro que indiscutivelmente vem sendo utilizado pelos tribunais para quantificar o que seria um imóvel rural pequeno, para fins de aferição da impenhorabilidade.

No entanto, muitos se equivocam ao pensar – e até mesmo ao pleitear em juízo a impenhorabilidade de um imóvel rural -, que apenas a área ser menor que quatro módulos fiscais é suficiente para caracterização da impenhorabilidade.

Não se pode olvidar de outro importante requisito cumulativo e que traduz o espírito do legislador para conferir tal proteção: que o imóvel seja explorado pela família para subsistência.

Evidencia-se que a proteção da pequena propriedade rural sempre esteve baseada na garantia da subsistência, assegurando para as famílias que vivem do que produzem em seus pequenos imóveis rurais a continuidade de sua atividade.

Para reconhecer a impenhorabilidade, portanto, nos termos da legislação processual civil (art. 833, VIII) são dois os requisitos que devem ser preenchidos: (i) que o imóvel seja pequeno em termos de área (que é aquele que não ultrapasse os 04 módulos fiscais) e (ii) que seja trabalhado pela família.

Não restam dúvidas de que cabe ao devedor comprovar que a propriedade penhorada não ultrapassa os quatro módulos fiscais. Já sobre o ônus da prova da exploração familiar da área muito se diverge na jurisprudência. Em razão das divergências de entendimento até mesmo entre as Turmas do STJ, no último ano, a Segunda Seção do STJ pacificou o tema no julgamento do REsp nº 1.913.234.

A partir de então o STJ passou a adotar posicionamento uníssono de que cabe ao executado comprovar que o imóvel é explorado pela família. Entendeu a Segunda Seção – além da aplicação da regra geral do ônus da prova -, que possui o devedor maior aptidão para produzir a referida prova, pois

é certo que é mais fácil para o devedor demonstrar a veracidade do fato alegado. Isso pois, ele é o proprietário do imóvel e, então, pode acessá-lo a qualquer tempo. Demais disso, ninguém melhor do que ele para saber quais atividades rurícolas são desenvolvidas no local. (Trecho do voto da Ministra Nancy Andrighi no REsp 1.913.234)

O fato de existirem diferentes posicionamentos dentro do próprio STJ permitiu com que os juízes e Tribunais dos Estados tomassem lados distintos. Apesar do STJ ter dirimido a divergência no último ano, não há tese repetitiva formada, que dê a devida segurança jurídica ao tema. Por isso, ainda vemos muitas decisões e acórdãos que entendem pela aplicação da presunção juris tantum, cabendo a prova negativa ao credor[1].

É válido colacionar abaixo, a ementa retirada de julgado recente do Tribunal de Justiça do Estado do Paraná – 29/01/2024 -, que desconsidera a pacificação do entendimento realizada pelo STJ e impõe o ônus da prova ao credor:

AGRAVO DE INSTRUMENTO. AÇÃO DE EXECUÇÃO DE TÍTULO EXECUTIVO EXTRAJUDICIAL. CONTRATO DE EMPRÉSTIMO RURAL. IMPENHORABILIDADE DA PEQUENA PROPRIEDADE RURAL. CONFIGURAÇÃO. PROPRIEDADE RURAL. TRABALHADA PELA ENTIDADE FAMILIAR. OBSERVÂNCIA AOS TERMOS DO ART. 5º, XXVI, DA CF E 833, VIII DO CPC. ÔNUS DE COMPROVAR QUE NÃO HÁ EXPLORAÇÃO FAMILIAR DA TERRA DO EXEQUENTE. 1. O reconhecimento da impenhorabilidade da pequena propriedade rural depende de seu enquadramento em área de até 04 (quatro) módulos fiscais e da utilização do bem para subsistência familiar, o que foi atendido no caso. 2. Há presunção juris tantum de que a pequena propriedade rural é explorada pela entidade familiar, cabendo ao exequente demonstrar que os executados não utilizam o imóvel para seu sustento. Agravo de Instrumento provido.

(TJPR – AI: 0085823-18.2023.8.16.0000 Castro, Relator: Desembargador Paulo Cezar Bellio, Data de Julgamento: 29/01/2024, 16ª Câmara Cível, Data da Publicação: 09/02/2024)

Por se tratar de matéria comum ao STJ e por ainda existir aplicação de entendimentos diversos pelos Tribunais Locais – que culminaram numa infinidade de recursos direcionados ao Tribunal Superior -, os Recursos Especiais nºs 2.080.023 e 2.091.805, de relatoria da Ministra Nancy Andrighi, foram afetados para julgamento no âmbito da Corte Especial, sob o rito dos recursos repetitivos, regulamentado pelo art. 1.036, do CPC.

O tema foi cadastrado sob nº 1234 e a questão submetida a julgamento é “Definir sobre qual das partes recai o ônus de provar que a pequena propriedade rural é explorada pela família para fins de reconhecimento de sua impenhorabilidade.”

Conclui-se, portanto, que, apesar do STJ ter pacificado o tema no último ano – entendendo que o ônus da prova da exploração familiar cabe ao devedor -, ainda nos deparamos com muitos juízes e Tribunais aplicando o entendimento que até então era esposado pela Quarta Turma, de que o ônus da prova cabe ao credor.

Por isso, é de suma importância a fixação da tese que virá quando do julgamento sob o rito dos repetitivos, Tema 1234. Apesar de ainda não visualizarmos todos os juízes e Tribunais aplicando o precedente da Segunda Seção do STJ, é evidente que há uma crescente de decisões entendendo pela atribuição do ônus da prova ao devedor.

Ou seja, na ótica atual não basta ao devedor somente demonstrar que o imóvel possui área inferior a quatro módulos fiscais, cabendo também a ele demonstrar ao juízo que verdadeiramente explora o imóvel para fins de subsistência familiar, sendo que somente com a comprovação de ambos os requisitos, poderá ser protegido pelo direito fundamental da impenhorabilidade.

 

 

[1] A exemplo: TJ-PR – AI: 00589700620228160000 Assis Chateaubriand 0058970-06.2022.8.16.0000 (Acórdão), Relator: Paulo Cezar Bellio, Data de Julgamento: 16/04/2023, 16ª Câmara Cível, Data de Publicação: 21/04/2023; TJ-MS – AI: 14028234920238120000 Paranaíba, Relator: Des. João Maria Lós, Data de Julgamento: 04/04/2023, 1ª Câmara Cível, Data de Publicação: 10/04/2023; TJ-MG – AC: 00303803620188130778 Arinos, Relator: Des.(a) Amorim Siqueira, Data de Julgamento: 07/03/2023, 9ª CÂMARA CÍVEL, Data de Publicação: 13/03/2023

Comments are disabled.